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“O Luto no morrer…”
O testemunho de uma doente oncológica que todos temos de ler

3/02/2016
Autor: Cristina Felizardo - Conselheira do Luto, Diretora e Vice-Presidente da APELO

 

“Os exames são claros. O cancro está muito avançado. (…) As metásteses (…) Estimamos que tenha cerca de seis meses de vida, mas pode (…) Temos tratamentos para a dor (…) Lamento muito!” – depois de ouvir a palavra cancro, a qual já fazia parte da minha vida no último ano, mas agora associada à palavra avançado, fez com que a minha mente entrasse em rodopio; sabia que o médico continuava a falar, mas as palavras que lhe saiam da boca não me faziam sentido e não estava a conseguir acompanhar o discurso dele. Percebi que a conversa tinha terminado após ouvir o irreversível: Lamento muito!
 
Ele lamenta muito?! Eu é que tenho 32 anos, numa relação com uma pessoa maravilhosa, finalmente a concretizar o meu projecto profissional na área do desporto e com o relógio biológico a despertar o meu desejo de ser mãe! Não! Com lamentos, ou sem lamentos, é simples! Isto não me pode estar a acontecer. Simplesmente não é possível, não com todos estes planos. Saí do consultório determinada a provar que este médico estava errado, que os exames estavam errados, que o laboratório estava errado… basicamente de que este dia não passava de um grande erro! Fiz telefonemas, estabeleci contactos, recorri a amigos, pedi segundas opiniões… mas inevitavelmente todas as conversas terminavam com o terrível: Lamento muito!
 
Desatei num pranto. Mas porquê a mim? Logo agora? Só tenho 32 anos, levo uma vida saudável, faço desporto desde que me lembro, não fumo, não bebo, tenho cuidado com a minha alimentação… não percebo! Tantos que nada fazem para cuidar da sua saúde, tantas pessoas que deitam literalmente a vida fora porque acreditam que não têm mais nada porque viver, outros que com vidas boémias, que vivem para comer e beber, todos eles com uma saúde de ferro!
 
E eu? Mas que fiz eu? Não é justo. Fui defraudada… Nesse dia, chorei sozinha, gritei com a minha mãe, berrei com o meu namorado, insultei o médico e amaldiçoei Deus… que grande plano era o Dele!
 
Depois, pensei, afinal ainda tenho seis meses! E se existir uma hipótese? Estas coisas estão sempre a acontecer, certo? Lemos na internet de que existem casos inexplicáveis de cancros terminais que entraram em remissão espontânea? E se eu for um desses casos?
Fiz todas as pesquisas relacionadas com métodos naturais para combater esta doença. Estabeleci o meu plano de recuperação: desporto aliado a uma dieta referenciada num estudo norte-americano de combate ao cancro: a dieta roxa e vermelha; e comecei a praticar meditação… afinal, na minha pesquisa 90% dos autores referiam que o pensamento positivo equivale a metade do tratamento.
 
O plano parecia simples, assim, impresso naquela folha de papel afixada na porta do frigorífico. O esforço para o manter era grande, pois estava a começar a sentir-me cada vez mais cansada. Ajudava ver os resultados nos exames que revelavam uma ligeira subida do ferro! Sim, podia ser ligeira, mas para mim aquele ponto percentual era imenso. As enfermeiras comentavam de que estava com boa cor e o meu espirito animado era contagiante. Ainda o consegui cumprir à risca durante cerca de 10 semanas. Mas depois, o humor começou a oscilar e manter-me animada exigia uma força titânica. A comida era sempre a mesma e comecei a deixar de saborear. O cansaço físico era real, o desporto por vezes era impossível. O golpe final, foi quando depois de tudo isto, as análises pioraram. 
 
Todo este esforço foi em vão! Nesse dia uma tristeza inundou-me a alma. Pensei no meu namorado que estava com a tripla função de companheiro, amigo e cuidador. Pensei na minha mãe, que nunca me deixou sozinha em nenhuma consulta, tratamento, internamento, até na corrida e na dieta roxa e vermelha ela me acompanhou. Pensei no meu pai que mesmo com uma carreira profissional exigente, arranjou sempre tempo para me levar a tomar um café na nossa esplanada preferida. Pensei no filho que não vou ter… e chorei! Sozinha, desalentada e cansada.
 
Um dia, disse em voz alta “Estou a morrer”… foi a primeira vez que me ouvi a mim mesma a dizer o que aquela vozinha escondida lá no fundo repetia uma e outra vez na minha cabeça.
A partir daí, algo mudou. Senti alguma paz.
 
Não se iludam: ainda continuo com esperança de que eu seja aquele caso extraordinário de remissão espontânea do cancro. No entanto, o esforço que é necessário para que esse milagre aconteça, não vale a pena. Se acontecer, serei a mulher mais feliz do mundo. Até lá, vou aproveitar o que o “meu jardim” tem para me dar!
 
 
“Enquanto há vida, há esperança!”
 
Ana, chamemos-lhe assim, conheceu todas as etapas do luto antecipatório. Os comportamentos gerados em cada momento do processo do morrer são necessários para que a consciencialização da má notícia seja plena. Quando a má notícia lhe foi comunicada, Ana ficou em choque, confusa, negando ativamente o que lhe estava a ser dito. Quando a realidade se tornou inegável, o acesso de raiva e fúria permitiu libertar a sua frustração face ao defraudamento das suas expectativas, à aniquilação dos seus sonhos.
 
No entanto, o instinto de auto preservação é essencial no ser humano e a esperança é o sentimento que revela esse instinto. Ana depressa negoceia os termos para se manter viva, assumindo compromissos e realizando tarefas que devido ao cansaço físico, mental e emocional, se revelam um esforço pouco recompensado. A derrota iminente leva ao reconhecimento da inegável realidade e a tristeza profunda abate-se sobre Ana. A exaustão neste ponto e o desalento da negociação falhada conduzem-na a uma pacificação com o seu “morrer”. Esta paz não traz alegria e a serenidade nem sempre está presente. É pautada por uma resignação face a todos os possíveis desfechos, incluindo a sua própria morte, mas nunca cessando a esperança secreta de que um “milagre” aconteça.
 
Ana sabe que está a morrer, mas acredita que “enquanto há vida, há esperança!”
 
 
 
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