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Entrevista: “O meu pai ajuda pessoas”
A inocência do pequeno João de sete anos explica bem o significado da profissão de João Paulo Nunes, um dos primeiros tanatopractores em Portugal.

31/07/2015
Autor: Joana Martins Gomes

 

João Paulo Nunes dedica-se à tanatopraxia há dez anos, mas já há 16 que está no setor fúnebre na Funerária Moderna. Inconformado formou-se no estrangeiro para saber mais. Tudo para que a última imagem seja boa.O Até Sempre falou com o “homem que maquilha a morte” e conta-lhe a história. 
 
 
Até Sempre: João conte-nos como tudo começou?
João Paulo Nunes: Eu comecei no setor funerário com 17 anos, estava a terminar o 12º ano, e desejava entrar na judiciária. A investigação criminal sempre me fascinou e gostava de ter conciliado isso com a medicina legal. Mas, nessa altura, houve uma mudança a nível familiar e os meus pais deixaram o negócio entregue aos filhos. Os meus irmãos que já estavam no ramo a alguns anos, sentiam-se saturados desta carreira e decidiram experimentar “o puto” e ver se eu conseguia levar isto adiante. 
 
A.S.: E conseguiu?
J.P.N.: Não demorei muito tempo a adaptar-me, fui lançado para a linha da frente e tive de amadurecer rapidamente. Comecei a negociar, a explicar os procedimentos aos clientes, a lidar com o dinheiro. O meu irmão só me dizia: “Tens aqui este dinheiro, tens de fazer os pagamentos e ainda tem de sobrar.” 
A única coisa que me fazia impressão, no início, era ver as pessoas chorar. Incomodava-me mesmo. Na altura não tocava nos corpos, mas rapidamente isso mudou. 
 
A.S.: Quando e como se deu essa mudança?
J.P.N.: Sempre tive uma visão mais além. Existiam muitos casos em que as mortes eram traumáticas e se tinha de fechar a urna. Não havia possibilidade de fazer nada mais. Isso foi uma coisa que sempre me inconformou! Por exemplo, quando se precisava de reter um corpo por vários dias para as famílias que vinham de fora era chocante para as pessoas, o estado em que o cadáver ficava. Isso na minha cabeça não fazia sentido! Achava, e bem, que tinha de haver evolução como em todas as áreas.
 
A.S.: E então o que fez?
J.P.N.: Somos um país pequenito mas de cidade para cidade os funerais são tratados de forma diferente. Um funeral em Lisboa realiza-se de uma maneira e nesta margem (sul) é de outra forma. Eu aprendi como se fazia nos diferentes sítios. A partir daí comecei a ter o contato com o corpo. Na altura, era só vestir e limpar com toalhetes. Como aquilo não estava certo para mim comecei a pesquisar em livros e a interessar-me mais. 
 
A.S.: Foi aí que decidiu ser tanatopractor?
J.P.N.: Sim. Comecei por fazer cursos de iniciação em 2005 e 2006, no Instituto de Medicina Legal em Lisboa. Mas anteriormente já tinha estado em feiras internacionais e percebido que podíamos fazer mais pelos cadáveres. Em 2008, fui para Barcelona tirar um curso de 120 horas. Depois estive, cerca de um ano e meio, entre Barcelona e Paris, num curso mais completo com mais de 750 horas onde tive aulas práticas e conclui com o exame final. Não foi fácil!
 
 
A.S.: Porque diz que não foi fácil? Não teve apoio?
J.P.N.: Para ser muito sincero não tive muito apoio, com exceção da minha mulher e filho, e de um dos meus irmãos. Os meus pais acham incompreensível, ainda hoje! Valorizam, não negam o que peço a nível de material, mas não houve apoio. Têm é o feedback dos clientes que lhes dizem “o seu filho tem mãos de ouro” ou “nasceu para isto” e aí eles respeitam mais. 
 
A.S.: Há sete anos como vendia o serviço? As pessoas compreendiam?
J.P.N.: Eu não vendia o serviço, eu oferecia-o, no início. Ou seja, eu dizia à família o que ir fazer, se as pessoas não gostassem, o trabalho era desfeito.
 
A.S.: Alguma vez teve de desfazer o trabalho?
J.P.N.: Nunca me aconteceu! A primeira imagem que as pessoas viam eram, frequentemente, má e depois do trabalho feito ficavam maravilhadas. Só não entendiam como em pouco tempo conseguia deixar a pessoa tão bem, “igual ao que estava” antes de falecer.
 
A.S.: Em 2015, a abordagem já é outra? Os clientes pedem-lhe o serviço?
J.P.N.: Hoje em dia, ainda ninguém me diz: “quero o serviço de tanatopraxia ou tanatoestética.” Chegam aqui e dizem: “Sr. João queremos o tratamento”. É assim aqui na minha agência (Funerária Moderna). É um boca a boca. Apesar de não dizerem as palavras técnicas reconhecem o meu trabalho e o cliente contrata-o, logo à partida. Quando pergunto que tratamento eles querem, respondem que é aquele que faço para deixar a pessoa em condições para o velório e funeral.
 
A.S.: Porque tantos diplomas na parede?
J.P.N.: Penso que o facto de ter tantos diplomas, tantas vezes o mesmo nome, leva as pessoas a interrogam-se e a valorizarem o número de cursos que tenho. Acho pertinente não ter apenas um e ter investido na carreira. Ainda este ano conclui um curso de medicina legal com o Prof. José Eduardo Pinto da Costa. As pessoas fazem questão de deixar uma mensagem num livro de agradecimento pelo meu trabalho e isso deixa-me muito orgulhoso.
 
A.S.: Como justifica a falta de tanatopractores em Portugal?
J.P.N.: Sou formador, dou imensos cursos e uma das coisas que percebi é que experiência não significa sabedoria. Não querem apostar na formação e a legislação é escassa! Acho que há pouca vontade de colocar em prática o que ensino, eu ensino muito mais que aquilo que o aluno faz na sua profissão. E para mim, o que justifica isso é não terem condições para exercer, a empresa não permitir o serviço, ou simplesmente quer apenas ter um certificado, sem colocar a formação em prática. Dei formação a mais de 100 pessoas, conta-se pelos dedos da mão quem faz o que aprendeu. 
 
A.S.: Acha que a Portaria de 1 de junho de 2015 é o início da mudança?
J.P.N.: A Portaria veio complementar o Decreto-Lei 109/2010. São passos muito importantes no sentido de melhorar o serviço funerário, clarificar algumas divergências e para que quem é realmente tanatopractor é o reconhecimento que faltava.
 
A.S.: O que considera crucial fazer quando alguém morre?
J.P.N.: Fazer a cronologia da desinfeção e a cronologia da maquilhagem. Desinfetar o corpo com produtos específicos e com a sequência de passos correta para que o resultado final seja excelente. Ou seja, desinfetar interna e externamente para que bactérias, germes sejam eliminados e não haja perigo quando os familiares tocam no corpo, por exemplo. Depois executar a tanatopraxia ou a tanatoestética, consoante o que for necessário. 
Mas a minha técnica não é “chapa 5 para todos”, não é só fazer o que está nos manuais. É preciso avaliar! Cada corpo é um corpo. 
 
A.S.: Se tivesse que explicar num “b-a-ba” o que é ser tanatopractor, o que dizia?
J.P.N.: O meu filho de 7 anos diz: “O meu pai ajuda pessoas”. E acho que esta definição é gratificante. Eu ajudo as pessoas a viver o luto, de uma maneira anónima, para que elas fiquem com uma boa última memória, uma última imagem de paz e tranquilidade. Os latinos têm de mexer, têm de ver, a nossa mente precisa de um flash final da pessoa. É reconfortante tornar-se esse flash o melhor possível.
x Notificação de falecimentos
x INSCRIÇÃO WORKSHOP LUTO