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“Já chega de nos escondermos”
Este é o testemunho de uma doente bipolar que se vê obrigada a manter o anonimato para não sofrer (mais) represálias. Aos 29 anos, “Maria” (vamos chamar-lhe assim) partilha com o Até Sempre a história com a qual está obrigada a lidar há nove anos.

10/10/2015
Autor: Irene Palma

 

Tem 29 anos, uma voz simpática, ideias bem definidas e uma naturalidade contagiante para abordar a perturbação bipolar que lhe foi diagnosticada. Há nove anos que sente olhares reprovadores daqueles que sabem a doença que tem. Por isso, para se proteger, opta por não dar a cara. Vamos manter no anonimato a identidade e chamar-lhe “Maria”. “Quando volto à minha aldeia ainda me olham de lado. Esta doença é para a vida. É uma questão química dos neurotransmissores, mas chega de nos escondermos”, desabafa em jeito de revolta.

 

O Até Sempre desafiou-a a recordar como é que de um momento para o outro algo lhe mudou a vida. Fala com uma abertura impressionante daquilo que a memória ainda guarda: “O primeiro surto foi em 2006. Não me recordo muito bem como começou. A justificação que tenho é que tenha tido a ver com as mudanças que aconteceram na minha vida. Fui para a Universidade, tinha muitas novidades e comecei por achar que não precisava de dormir tanto, nem de comer, porque tinha muitas coisas importantes para fazer. Tinha muitas atividades ao mesmo tempo. Enquanto me licenciava em Biologia estava no Conservatório, no canto, frequentava um curso de Inglês… Tinha o dia extremamente cheio.”

 

“Com o surto deixei de ir às aulas. Tinha o meu tempo e não ligava ao tempo dos outros. Tinha muita energia, e nem sei onde a ia buscar. Lembro-me que na altura do primeiro surto, numa noite andei pela casa a fazer coisas e virei a cozinha de pantanas para descobrir uma coisa nova… Os meus pais descobriram o que se estava a passar e proibiram-me de sair do quarto à noite. As pessoas da minha aldeia achavam que era depressão… Começaram a olhar-me de forma diferente”, conta “Maria” sobre esta fase da vida.

 

“Sentimos que conseguimos ser o que quisermos”

 

Na época fazia 30 quilómetros diariamente para ir da aldeia onde vivi até Aveiro, onde estudava na Universidade. Mas, o que é ser bipolar? “Não sei bem como lhe explicar isto da bipolaridade. Estes surtos de mania… Sentimos que conseguimos fazer tudo o que quisermos. Conseguimos ser o que quisermos. É como se os outros estivessem lá mas não ligássemos nenhuma às convicções deles, nem ao que vão pensar de nós. O resto deixa de existir… Fazemos coisas sem nexo, mas que para nós parecem normais. Eu com o surto metia conversa com todos, pegava no bloco e começava a desenhar, cantava... Depois o choque é quando começamos a medicação pois como é muito forte dormimos muito. É como se as coisas fossem apagadas da nossa memória. O primeiro surto durou bastante tempo, quase um mês” afirma “Maria”, prosseguindo: “A minha mãe procurou ajuda e fomos ao psiquiatra. Na primeira consulta não conseguia dizer nada. Estava num estado de ansiedade tal que não me conseguia defender. A única coisa que consegui fazer foi cantar.”

 

Recuperou deste primeiro embate com a doença. Passou a fazer medicação diária, mas em 2010 teve o segundo surto, durante uma conferência da Universidade, o que acabou por influenciar-lhe o futuro, pois foi obrigada a colocar de lado o objetivo de fazer Erasmus.

 

“Ainda não se sabe a causa disto, mas parece haver uma predisposição genética. A minha família tem um historial de depressão”, desabafa.

 

Casar e ter filhos, como qualquer outra mulher

 

“Maria” não tem dúvidas de que existe um estigma em relação aos doentes bipolares. “Voltamos ao mesmo sítio onde estávamos quando o surto aconteceu e sentimos que as pessoas olham para nós. Parece que temos de justificar-lhes o que aconteceu, porque aconteceu, mas que já está tudo bem.”

 

Licenciada em Biologia pela Universidade de Aveiro, já tirou Mestrado em Biologia Molecular e Bioinformática. Está a trabalhar num centro de genética. No dia a dia prefere não abordar a doença, mas gostava de falar com quem também sofre desta perturbação: “Não tenho conhecimento de doentes bipolares e gostava de ter para haver uma troca de experiências. Escondemo-nos atrás disto. É como que uma muleta e não avançamos da maneira mais apropriada pois temos a sensação de que estão sempre a falar de nós.”

 

Esta jovem considera extremamente positivo que exista o Dia Mundial da Saúde Mental. “Acho muito importante pois já chega de nos escondermos. É preciso que as crianças saibam que esta doença existe e não nos olhem de lado. Eu sou como qualquer pessoa. Muito feliz, mas todos achamos sempre que podemos ser mais felizes. Vivo junto com o meu namorado e gostaria de casar e ter filhos . É normal, não acha?”, interroga-nos. Sim “Maria”, é normalíssimo para uma jovem de 29 anos.

 

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